No momento em que o paleontólogo Alceu Ranzi lidera uma expedição de cientistas, inclusive estrangeiros, ao interior do Acre e ao sul do Amazonas, em busca de respostas sobre o que significam os geoglifos encontrados na região, além de informações sobre quando e qual foi a civilização que os construiu, imagens de satélite e novas tecnologias vêm descortinando cada vez as estruturas impressionantes na Amazônia, especialmente no estado do Acre. Estas enormes estruturas geométricas de terra, com até 2.000 anos, desafiam antigas narrativas e apontam para civilizações sofisticadas.
A redescoberta dos geoglifos na Amazônia, principalmente no Acre, iniciou-se com o avanço do desmatamento a partir da década de 1970, que expôs as estruturas. As primeiras investigações formais datam de 1977, mas foi a visão aérea, impulsionada pelo professor Alceu Ranzi em 1986, e o uso de imagens de satélite a partir de 2005, que revelaram a magnitude do fenômeno.
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O objetivo da atual expedição de Alceu Ranzi, que se encerrará no próximo dia 10 de junho, é recolher material genético capaz de ser analisado com o Carbono-14, técnica que mede a idade de restos biológicos com base na decadência de isótopos radioativos, essencial para determinar a cronologia dos objetos. Com essa informação e o uso da tecnologia, os cientistas querem descobrir a data das escavações e a partir daí descobrir qual civilização vivia na região.
Pesquisas atuais revelam sinais de que, na região, existiram sociedades complexas, com capacidade cognitiva comparável à da Grécia Antiga. Esta nova expedição começará por Assis Brasil, na fronteira do Acre com o Peru, e seguirá de Boca do Acre, no Amazonas, até a margem direita do rio Purus e a margem esquerda do rio Madeira, em Rondônia, além das margens do rio Abunã, na fronteira do Acre com Pando, na Bolívia.

Chamadas de “tatuagens da terra” pelos grupos indígenas contemporâneos, os geoglifos contam parte da nossa história/Foto: Reprodução
As estruturas apresentam formas geométricas precisas como círculos, quadrados e hexágonos, com dimensões que variam de 100 a 300 metros de diâmetro ou lado. As valas escavadas podem ter até 5 metros de profundidade e 20 metros de largura. Datações por carbono-14 indicam que foram construídos principalmente entre 500 a.C. e 1000 d.C. Até março de 2025, mais de mil geoglifos foram identificados no Acre.
A identidade étnica exata dos construtores dos geoglifos na Amazônia permanece um enigma, sendo por vezes chamados de “Civilização Aquiry”. A hipótese mais provável é que se tratava de uma civilização multiétnica em rede, compartilhando traços culturais. A construção dessas obras monumentais exigiu organização social avançada e conhecimento técnico, utilizando ferramentas de madeira e pedra.
Evidências arqueológicas indicam uma economia diversificada, com cultivo de milho e abóbora, coleta de castanhas e frutos, caça e pesca. Essas sociedades praticavam o manejo florestal ativo, incluindo queimadas controladas, há pelo menos 4.000 anos, moldando a paisagem. Muitos geoglifos eram interconectados por um sistema de estradas retilíneas.
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A função primária dos geoglifos na Amazônia é amplamente aceita como cerimonial e ritualística. A monumentalidade e precisão geométrica transcendem necessidades puramente utilitárias. Eles provavelmente funcionavam como espaços de encontro social e agregação comunitária, reunindo diferentes grupos para rituais, festividades ou deliberações.
As estruturas também poderiam servir como marcadores territoriais, imbuindo a paisagem de significado cultural – uma “tatuagem na terra”, como descrito pela etnia Huni Kuin. Para alguns povos indígenas atuais, esses locais são considerados sagrados. Embora funções secundárias como defesa ou observação astronômica sejam especuladas, a interpretação ritualística predomina.
As descobertas dos geoglifos na Amazônia refutaram categoricamente a noção de um “vazio demográfico” pré-colombiano na região. Elas são testemunhos de uma ocupação humana densa, duradoura e socialmente organizada, com capacidade de transformar a paisagem em larga escala.
Essas sociedades não apenas se adaptaram à floresta, mas a moldaram ativamente, demonstrando que a complexidade social na Amazônia também floresceu em regiões de terra firme. Isso enriquece a história indígena e tem implicações para o entendimento da biodiversidade amazônica, que pode ter sido influenciada por essas práticas ancestrais.
A tecnologia LiDAR (Light Detection and Ranging) revolucionou a pesquisa, permitindo mapear estruturas sob a floresta densa. Projetos como “Amazônia Revelada” (USP) e “Desvelando o ado profundo” (Instituto Geoglifos da Amazônia) utilizam LiDAR e integram o conhecimento tradicional indígena.
A principal ameaça aos geoglifos na Amazônia continua sendo o desmatamento. A preservação desses sítios é urgente, incluindo o tombamento pelo IPHAN e o reconhecimento como Patrimônio Mundial pela UNESCO. O potencial turístico existe, mas deve ser desenvolvido de forma responsável. Os geoglifos são um elo vital com o presente, oferecendo lições sobre sustentabilidade e a profunda relação entre humanos e a floresta.