A morte do homem cuja a arte deu rosto à dor, à esperança, à resistência e à beleza da própria natureza ao redor do planeta, com suas paisagens humanas, inclusive na Amazônia, o fotógrafo Sebastião Salgado, falecido aos 81 anos, na sexta-feira (23), em Paris, deixará uma lacuna profunda entre acreanos que tiveram a oportunidade de ser retratados por aquele que é considerado o maior profissional do mundo na área fotográfica.

Histórias de Sebastião Salgado na Amazônia: fotógrafo se tornou Doutor Honoris Causa pela Ufac. Foto: Reprodução
Por trás das belas imagens em preto e branco de pessoas, rios e da floresta amazônica, as descrições dos acreanos que tiveram contato com o profissional apontam para um ser humano que foi capaz de ir além da fotografia, e de captar a essência e a alma do que fotografava.
É o que diz, por exemplo, o indígena Biraci Brasil, líder do povo Yawanawá, da aldeia às margens do Rio Gregório, na floresta pertencente ao território do município de Tarauacá, interior do Acre.
Como o líder indígena já contou em várias entrevistas, até o início dos anos de 1980, os Yawanawá viviam praticamente em regime de escravidão nos seringais do Acre.
Homens trabalhavam alcoolizados, as mulheres eram sexualmente escravizadas, os jovens fugiam das aldeias, e doenças como malária, tuberculose e sarampo vitimavam crianças e idosos.

Acreanos que conviveram e foram fotografados pelo artista dizem que ele via além da fotografia. Foto: Reprodução
Além disso, ainda havia na aldeia, assim como em outras e de outras etnias, a pressão de missionários e pastores pentecostais que, sob a desculpa do batismo de quem eles consideravam hereges à conversão e à religião cristã, aldeias inteiras abandonavam suas tradições, inclusive a língua materna.
Era uma época em que os governos diziam, de diversas formas, que no Acre nem no restante da Amazônia já não haviam indígenas autênticos. “Só uns cabocos bêbados”, chegou a dizer na época um influente político acreano, no que foi desmentido publicamente pelo trabalho do antropólogo Terry Valle de Aquino, que não só revelou a existência dos indígenas em regime de escravidão como também deu conhecimento ao mundo da ação dos missionários e do avanço sobre povos isolados e sem qualquer conhecimento da chamada sociedade dos brancos, gente que ainda não conhece a roda, não domina o fogo e muito menos o sal.
A visita de Sebastião Salgado à aldeia dos Yawanawá, assim como a ação de outros aliados da causa indígena, aquele povo ameaçado de desaparecer junto com sua cultura, como ocorreu no ado, foi aos poucos devolvendo a autoestima de todas a aldeia.
Uma autoestima tão forte que o hoje os Yawanawá do Rio Gregório, como é reconhecido o povo liderado por Biraci Brasil, não só recuperou sua cultura e seu modo de vida como é dono de seu próprio destino e, a seu modo, dá lições ao mundo, mesmo o dito “civilizado”, que é possível uma convivência harmônica do ser humano com a natureza.
Hoje, os Yawanawá são reconhecidos por parcerias com grandes marcas, pela presença em fóruns internacionais e por festivais xamânicos que atraem à sua aldeia centenas de visitantes brasileiros e estrangeiros — muitos interessados em ayahuasca e rapé, considerados medicinas sagradas pelo grupo.
Ao longo desse processo de transformação, conquistaram a demarcação de seu território, reinventaram práticas culturais e expulsaram seringueiros e missionários. Sua trajetória se tornou referência para povos indígenas vizinhos, que aram a seguir caminhos semelhantes.
“Fomos o primeiro povo indígena a firmar um contrato comercial com uma empresa norte-americana de cosméticos, em 1987. Ele está em vigor até hoje. Fomos quebrando vários tabus. Todos os que visitaram nossa terra, de certa forma, nos devolveram a autoestima, a confiança, o amor e a paz que nos tiraram. Hoje recebemos parentes desde o norte do Canadá até os Mapuche, no Chile”, disse Biraci Brasil em uma entrevista à BBC News Brasil, sobre as mudanças vivenciadas por seu povo.
Foi Biraci Brasil que serviu de guia para Sebastião salgado em sua visita à aldeia, em 2016. Foi fotografo por ele várias vezes.
Indígena que foi modelo de Salgado agora também é fotografa
Outra indígena fotografada por Salgado quando tinha 12 anos, Yara Piyãko, que hoje tem de 21 anos e cuja foto foi capa do livro fotográfico ‘Amazônia’, segue os os do profissional. Agora, ao invés de ser a modelo fotográfica, ela é a fotógrafa, inspirada pelo artista.
Yara Piyãko pertence ao povo Ashaninka do rio Amonea, da Tera Kampa do território de Marechal Thaumturgo, Vale do Juruá, na fronteira com o Peru.
“Ele conviveu com o povo Ashaninka, foi um ato importante, um encontro de almas interessadas na preservação da vida, da cultura. Para a gente a convivência foi profunda, transformadora e que deixou raízes para toda vida”, diz a jovem ao descrever a agem do fotógrafo Sebastião Salgado na Terra Indígena.
“Ele chegou e conversou com as lideranças. Foi montada uma espécie de expedição para fazer fotos da nossa cultura e arte. Ele montou um estúdio para as pessoas pousarem, tirarem fotos das famílias e foram feitos retratos das grandes famílias do nosso povo. Ele ficou mais ou menos um mês aqui, então, fez muita foto”, afirmou.
“Ele mandou eu olhar para a câmera. Estava olhando de um jeito e ele pediu para eu virar um pouco o rosto e olhar. Na época não sabia quem era ele, não sabia da importância. Não tínhamos muito o à internet, rede social e só descobri depois que cresci”, explicou.
A experiência de Yara com a fotografia vai muito além da experiência de ter o olhar captado por um dos maiores profissionais da história. Ela viu na arte de eternizar momentos uma oportunidade de ajudar seu povo e também se tornou uma fotógrafa.
Agora, ela fotografa o dia a dia de seu povo.
Em 2021, Yara esteve em São Paulo com um grupo de indígenas visitando a Exposição Amazônia, no Sesc Pompeia. Lá, ela reencontrou o fotógrafo e recebeu das mãos dele um dos livros com fotos da exposição.
“Ficamos bastante conhecidos por conta dessas fotografias, iramos muito ele. Foi uma grande perda, ninguém sabia que ele estava doente. Soubemos por meio do jornal”, destacou.
A exposição “Amazônia” contou com mais de 200 fotos impressas e outras 200 projetadas em salas escuras sobre a floresta e os povos indígenas. Entre elas, estão retratadas imagens dos povos indígenas Ashaninkas do Rio Amônia e na Terra Indígena Rio Gregório.
Em 2022, o fotógrafo descreveu como foi a experiência na região em um texto em inglês nas redes sociais e publicou, dentre outros registros, a foto de Yara.
“Seja vista do céu ou do chão, a Amazônia sempre me encheu de iração. Nem palavras nem fotografias conseguem transmitir plenamente a sensação de estar diante da força e majestade absolutas da natureza. Igualmente inesquecível foi o sentimento de intimidade que experimentei ao ar semanas seguidas com diferentes tribos. Senti-me privilegiado por poder compartilhar seu tempo e espaço, primeiro aprendendo pacientemente a ser aceito, depois registrando silenciosamente suas vidas cotidianas. Assim, pude sentir e transmitir sua gentileza”, disse.
A convivência com os Korubos, no Vale do Javari
Outra região da Amazônia muito visitada por Sebastião Salgado foi o Vale do Javari, no oeste do Estado do Amazonas, próxima à fronteira com o Peru. A região abriga sete povos indígenas de contato recente ou permanente, além de pelo menos 14 grupos isolados — oito com registros confirmados e seis em estudo ou sob investigação. Trata-se da maior população indígena não contatada do mundo.
Salgado foi o primeiro a registrar os korubo, em outubro de 2017. Também fotografou os marubo — uma das maiores populações da região, com cerca de 2.500 pessoas. Os korubo iniciaram os primeiros contatos com não indígenas nos anos 1990, durante um surto de malária.
Atualmente, são cerca de 100 pessoas, vivendo em duas aldeias e com pouca interação com o mundo exterior. Outros grupos permanecem em isolamento e, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), enfrentam ameaças constantes de invasores, especialmente garimpeiros, em áreas como os rios Jutaí e Jandiatuba. Poucos falam português.
“Em 2017, Sebastião Salgado me procurou querendo ar os indígenas korubo. Na época, eu não sabia quem ele era e disse: ‘Não concordo. Esse tipo de trabalho tende a retratar os indígenas como se vivessem isolados e puros, o que não condiz com a realidade. Eles estão vulneráveis diante de uma Funai que falha em protegê-los e, muitas vezes, os coloca em risco. Não acho certo’”, revelou um líder do povo.
Segundo ele, a decisão foi precedida por semanas de conversa. “Ficamos um mês nessa discussão. Mas ele disse: ‘Beto, eu quero e posso ajudar você. Vou levar essa preocupação a todos os fóruns em que eu apresentar essas fotos. Não é só falar, é mostrar. Eles vão se sensibilizar’. E eu acabei indo com ele.”
Fotografo era contra estrada na Serra do Divisor, no Acre
O fotógrafo esteve no Acre em 2016 visitando as terras indígenas e também para receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Acre (Ufac). Ele ou sete anos viajando pela Amazônia fotografando as florestas, rios, montanhas e os povos originários da região.
“Tragédia para toda a Amazônia”, disse o fotógrafo ao saber do interesse governamental, estadual e federal, na abertura de uma estrada de mais de 200 quilômetros por dentro do parque, para ligar Cruzeiro do Sul, no Juruá, com a cidade de Pucallpa, na região de Yucauiali, no Peru.
Na última sexta-feira, esta vida construída com belas imagens chegou ao fim causado por malária, contraída na Indonésia. Por isso, se aposentou do trabalho de campo em 2024, dizendo que seu corpo estava sentindo “os impactos de anos de trabalho em ambientes hostis e desafiadores”.
Salgado ficou famoso por fazer registros documentais impressionantes, como o da Serra Pelada na década de 1980; “Trabalhadores”; e o ensaio “Êxodos” mostrando povos migrantes pelo mundo. Ao todo, percorreu mais de 120 países.
Associação Ashaninka do Rio Amônia e a Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ) lamentaram a morte de Sebastião Salgado em nota de pesar. As associações destacaram que, com a câmera, ‘Salgado revelou ao mundo a força e a sabedoria dos povos indígenas, denunciou injustiças e defendeu a floresta com imagens que falam mais alto que palavras’.
“Sua experiência e vivência com o povo Ashaninka do Rio Amônia foi marcante — um encontro de almas comprometidas com a preservação da vida, da cultura e do território. Para nós, essa convivência foi profunda e transformadora, deixando sementes que continuarão a florescer por muitas gerações”, diz a nota.
A OPIRJ destacou que Salgado não foi apenas um dos maiores fotógrafos do mundo, mas também um incansável defensor dos povos indígenas, da Amazônia e dos direitos humanos.
“Suas lentes capturaram não só imagens, mas a dignidade, a beleza e a luta dos que vivem em harmonia com a floresta. Seu olhar comprometido levou o Brasil profundo ao mundo e inspirou gerações. Hoje, a terra perde um de seus grandes guardiões. Que sua memória siga viva na resistência dos povos originários e na luta por justiça socioambiental”, acrescentou a organização.