5 de junho de 2025

Censura nos Estados Unidos: depois das bibliotecas escolares, museus de arte viram alvo, como aponta relatório

Obras com críticas ao cristianismo ou a Trump, ou que expressam apoio a Israel ou à Palestina e que abordam temas LGBTQIAP+, estão na mira

Um relatório publicado pela organização sem fins lucrativos PEN America sob o título “O horizonte da censura” alerta sobre cancelamentos e atos de censura em museus nos Estados Unidos por motivos ideológicos ligados a questões ambientalistas ou religiosas, ao conflito entre Israel e Palestina e à agenda de diversidade sexual, entre outros temas. Ao mesmo tempo, o documento também indica que legisladores de diferentes estados americanos — na maior parte vinculados ao Partido Republicano — vêm apresentando projetos de lei para eliminar as isenções de responsabilidade penal pela exibição de material sexualmente explícito ou nudez para menores de idade. A pesquisa foi realizada entre junho e julho de 2024, época em que Joe Biden ainda era presidente dos Estados Unidos.

Estátua de mármore das Três Graças, na seção Grécia e Roma do MET de Nova York — Foto: Divulgação

Se os projetos legislativos se transformarem em leis, algo tão comum quanto uma estátua ou uma pintura que exiba um corpo nu poderia expor um museu ou seus diretores a uma ação judicial. A PEN America ressalta que a simples apresentação desses projetos representa uma ameaça à liberdade artística, à liberdade do público e aos museus. Os debates sobre o que é e como funciona a censura nos museus podem afetar tanto as aquisições de obras como as exposições e os programas públicos.

Segundo o estudo, baseado em outra pesquisa realizada em 2021 com 1200 americanos, tanto os visitantes quanto os não visitantes de museus no país citaram esses espaços como a primeira e a segunda fontes de informação mais confiáveis na sociedade. Para ambos os grupos — frequentadores e não frequentadores de centros culturais de arte —, os museus ficaram muito à frente da internet, dos políticos e até dos meios de comunicação.

A pesquisa de 2024 — uma iniciativa da Associação de Diretores de Museus de Arte (AAMD), da PEN America e da organização Artists at Risk Connection (ARC) — abordou o estado atual da censura e da autocensura, e como esses tópicos são vivenciados no cenário cultural do país. Tentou-se investigar o quanto de censura se percebe estar acontecendo nos museus de arte, de que forma e por qual motivo; de onde acreditam que vêm as ameaças; como essas tendências recentes se comparam com as do ado; e se as leis estaduais voltadas para a educação pública têm efeito sobre os museus. A AAMD representa mais de 220 dos principais museus de arte dos Estados Unidos, do Canadá e do México. A pesquisa foi focada nos diretores de museus americanos, e 95 deles responderam.

Entre os entrevistados, 90% afirmaram que não existe nas instituições um protocolo que regule a forma de responder a uma tentativa de censura. Documentos do tipo poderiam ser “vitais” para o funcionamento das instituições, como os diretores reforçaram. Entre os temas mais comuns como alvos de censura, estão as obras que fazem referência ao conflito entre Israel e Palestina, as que criticam o cristianismo e as que abordam a sexualidade.

Todos os entrevistados indicaram que a censura está se agravando e que pode aumentar no futuro: 41% responderam que a censura pode vir de autoridades republicanas, contra 3% que apontaram as autoridades democratas; entre esses, aparecem como “fontes de censura” os conselhos dos museus (13%), os doadores (12%), a equipe do museu (11%) e o público (7%). Eles destacaram que poderia aumentar a “pressão para autocensurar” curadores. Quando perguntados se já haviam experimentado “pressão para não incluir uma exposição ou uma obra de arte” em algum momento ao longo de suas carreiras, quase 65% dos entrevistados responderam afirmativamente.

Um Modigliani da coleção do Guggenheim — Foto: Divulgação
Um Modigliani da coleção do Guggenheim — Foto: Divulgação

Quase metade dos entrevistados (45%) disse ter recebido pressão para não exibir obras de arte porque eram consideradas “potencialmente ofensivas ou controversas” para alguém. Algumas respostas foram mais específicas: as queixas se concentravam em algum aspecto da vida dos artistas (26%) ou sobre a origem racial ou étnica de um artista (9%). Outros diretores indicaram ter recebido pressões de membros do conselho do museu (15%) ou dos doadores (15%). Trinta por cento dos entrevistados receberam questionamentos sobre obras “inapropriadas” para crianças numa visita escolar.

Muitos diretores afirmaram que estavam tentando encontrar uma “abordagem adequada” para os artistas que expressam apoio a Israel ou a Palestina em suas obras. “É quase certo que qualquer exposição desse tipo se tornará um para-raios para as vozes extremistas de um lado ou de outro”, afirmou um dos entrevistados. “Agora parece inevitável ofender alguém”, disse outro.

Quanto às queixas do público, foram mencionados os protestos de ativistas ambientalistas do grupo Just Stop Oil (que “atacaram” com tinta ou sopa obras de arte no hemisfério norte) e do Decolonize This Place (um grupo decolonialista). Para os diretores, as queixas poderiam surgir por exposições ou obras “críticas” ao cristianismo (30%), ao então (em 2024) ex-presidente Donald Trump (28%), ao então presidente Joe Biden (21%) e às forças de segurança (21%) — ou então se as obras expressassem apoio ao aborto (19%), a um artista palestino (18%), a um artista israelense (13%) — ou se incluíssem nudez (13%), destacassem pessoas trans (12%), representassem a escravidão (9%) e representassem pessoas da comunidade LGBTQIAP+ (4%).

Mais de 80% indicaram que, se uma obra de arte fosse retirada devido à raça ou etnia do artista, ou porque o artista se identificava como LGBTQIAP+, esses casos seriam considerados atos de censura. E mais de 70% dos entrevistados indicaram que, se uma obra de arte fosse retirada devido à posição do artista sobre um assunto político, ou porque a obra fosse vista como “excessivamente política”, esses casos também seriam considerados censura. No entanto, se uma obra de arte fosse retirada porque um membro do conselho a considerasse de “baixa qualidade” ou porque os visitantes do museu “poderiam não apreciá-la”, apenas 41% e 34% dos entrevistados, respectivamente, indicaram que isso constituiria censura.

Sopa é jogada em 'Girassóis' de Van Gogh horas após ambientalistas serem condenados pelo mesmo ato — Foto: Just Stop Oil/AFP
Sopa é jogada em ‘Girassóis’ de Van Gogh horas após ambientalistas serem condenados pelo mesmo ato — Foto: Just Stop Oil/AFP

As pressões para censurar, eliminar ou restringir as obras de arte podem ser multidirecionais. Entre as conclusões, afirma-se que a censura pode responder a diversos interesses e atores: políticos de esquerda e de direita, fundamentalistas religiosos e ativistas. Os cinco achados da pesquisa são os seguintes:

  1. Não existe consenso sobre a censura nos museus de arte;
  2. Diretores de museus de arte sofrem pressões para censurar de muitas fontes;
  3. As percepções sobre as ameaças futuras de censura se orientam conforme as linhas partidárias (democratas e republicanos);
  4. Algumas decisões dos diretores ficam em uma “zona cinza” entre autocensura e curadoria;
  5. A maioria dos museus de arte age diante das tentativas de censura de maneira improvisada, sem seguir um protocolo.

“Em definitiva, a arte é um veículo vital para a mudança social, mas no momento em que ela tem que lutar pelo seu próprio direito de existir em um espaço público, a credibilidade da liberdade de uma sociedade é erodida”, destaca o relatório. “As comunidades precisam da arte para prosperar, refletir e pensar criticamente, e os artistas precisam de espaços para compartilhar suas vozes com as comunidades que servem. Em nossa era política contemporânea de guerras culturais como moeda política, muitos parecem ter esquecido esses princípios vitais e relações interconectadas. O futuro do campo dos museus de arte se beneficiará ao reforçar seu compromisso com os valores da livre expressão, especialmente porque podem ser ameaçados por ventos políticos mutáveis e novas pressões para censurar de várias direções, de formas sem precedentes”.

O relatório da PEN foi divulgado no mês ado, depois que, em dezembro, a mesma organização publicou um relatório sobre o crescimento no número de livros proibidos em escolas e bibliotecas escolares dos Estados Unidos, que triplicaram em um ano: aram de 3.362 para mais de dez mil (10.046). Nesse caso, a censura é atribuída a diferentes leis estaduais e à pressão de grupos conservadores sobre os distritos escolares. Entre outros, o catálogo proibido para adolescentes e jovens inclui grande parte da obra de Stephen King, Ellen Hopkins, Rupi Kaur e Sarah J. Maas, além de livros de Toni Morrison, André Aciman, Isabel Allende, Gabriel García Márquez, Elena Poniatowska e Junot Díaz, e até “Morte no Nilo”, de Agatha Christie, “A casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca, e “Wicked: memórias de uma bruxa má”, de Gregory Maguire, que inspirou a recente adaptação cinematográfica.

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